domingo, 21 de junho de 2020

Guerra com o passado - Episódio 03: O presente sem sentido

Este é o episódio 03 da série de contos de ficção/fantasia científica "Guerra com o passado". Você ainda não leu os episódios anteriores? Clique aqui e leia agora! E, se você já conhece a série, sei que estava ansioso por mais um episódio. Então, boa leitura ;)

        Ainda não entendia bem o que tinha acontecido. Os pensamentos na cabeça dela não paravam. Ela não sabia o que fazer. Claro, tinha que sair daquela confecção de peças de roupa. Não tinha sentido continuar ali. Nem o João Pedro sabia quem ele era. O pouco que sabia ainda era física; os princípios da ciência continuavam os mesmos. E ela entendia isso, apesar da perplexidade dos acontecimentos.

        “Então, é isso?”, tirava suas conclusões enquanto caminhava para fora daquele lugar, “Quer dizer que alterações no espaço-tempo demoram a afetar pontos distantes? A morte do avô de Julio ocorrera no século XXI e demorara mais de 400 anos para mudar o século XXV, o qual eu pertencia? Sabemos que a informação não se propaga instantaneamente. Deve ser isso… Mas e o que faço agora?”
        Não havia mais Carlos, Roberto, Departamento de Operações Ultrassecretas do Cosmos… Ela estava só e se perguntava sobre o que realmente tinha acontecido. As equações podiam prever tudo isso? E os criminosos existiam naquela nova realidade? Ela estava decidida a se informar sobre como tudo estava funcionando e, para isso, ela precisava de ajuda. Sozinha não havia como mudar nada. Ela teria sorte se os documentos dela fossem válidos naquele novo presente, mas assim como prédios, departamentos, governantes mudaram, o padrão da documentação dos cidadãos também devia ter mudado. Ela ainda estava perplexa com tudo que ocorrera; foi tão rápido. Ela não parava de se questionar sobre toda essa situação.
        As casas eram arquitetadas como as do século XX e as tecnologias com as quais ela estava acostumada, ali, eram coisas de outro mundo. E ela? Ela sequer existia, em termos jurídicos, naquele presente? Caminhava procurando um café, porque precisava se sentar para digerir todo o ocorrido. Enquanto estava caminhando calmamente, viu em uma espécie de tevê redonda uma reportagem sobre como o Primeiro Comando do Cosmos fazia um bom governo para todos, mostrando pessoas felizes, crianças brincando e sorrindo. Inicialmente, ela não acreditara nisso e pensou: “Só pode ser um pesadelo”. Quem dera. Ela, na verdade, apenas acabara de começar a entender as mudanças do mundo. Quando encontrou um restaurante qualquer, ela entrou e se sentou. Curiosamente todos a olhavam estranho.
        “Moço… Moço… Garçom!”, ela chamava um dos garçons que insistiam em ignorá-la. Até que em um dado momento, apareceu uma garçonete, que era jovem, branca, magra, tinha olhos azuis e olheiras bem acentuadas, para atendê-la:
        “Olá, o que você deseja?”
        “Apenas um café por enquanto. E vocês têm um jornal ou algo do tipo?”
       “Servimos café sim, mas não temos nenhum jornal. É só isso mesmo?”, ela falou apressada e parecia impressionada com a presença de Curie ali.
        “Sim. Quando eu precisar de algo mais, eu lhe peço.”
       “Senhora, deixa eu te explicar uma coisa: não temos o costume de atender negros aqui e muito menos mulheres desacompanhadas. Eu posso perder meu emprego só por fazer esse atendimento...”, antes de terminar o que queria dizer, um homem, alto, de terno e um pouco diferente do que todos estavam acostumados a ver por ali, aproximava-se dizendo:
        “E quem disse que ela está só?”
        A garçonete, então, foi fazer o pedido da doutora, que, curiosa e sem entender toda aquela situação, questionou:
        “Mas quem é você?”
      “Ninguém que você conheça.”, ele falou demonstrando interesse, logo continuou: “Apenas me chamou atenção uma mulher negra andando por aí só. A nossa sociedade ultimamente está muito perigosa e ainda mais para as mulheres negras. Não é de hoje que é feita a objetificação do negro. O nosso governo, inclusive, vende e compra alguns apenas para ter mão de obra para obras destinada a trabalhos braçais.”
        “O que? Não acredito que isso existe! É um absurdo!”
        “Como você não sabia disso? Você é de onde?”
       “Bom… Você também não vai acreditar.”, ela disse compreendendo que demoraria para alguém entendê-la. Tudo o que ela tinha vivido não fazia parte da realidade daquelas pessoas, como ela esperava que eles a entendessem? Claro que não entenderiam. Ciente disso tudo, ela resumiu: “Mas vivia em um lugar onde não havia tanta objetificação do povo preto, de um lugar bem diferente deste.”
        “Queria conhecer. Mas, antes, quem é você?”
       “Ah, é claro. Prazer, meu nome é Ana Curie dos Palmares, mas pode me chamar só de Curie. Eu trabalho com física, muita física mesmo. E qual o seu nome?”
      “Meu nome é Joseph Cooper Possidônio. Mas não precisa me chamar de tantos nomes, basta Joseph ou Cooper, o que preferir. Eu não faço nada muito interessante, apenas escrevo. Mas física… O que é isso?”
     “É a ciência que estuda as leis do universo no que diz respeito à matéria e à energia e suas interações. É uma forma de entender a música do Cosmos. Em resumo, é uma ciência bem divertida!”
       “Ciência… Por aqui não se valoriza tanto cientistas. Pelo contrário, costumam pensar que eles são loucos. Certa vez, um homem estava dizendo para todos que podia viajar no tempo, só que não podia nos mostrar. Não sei que fim ele teve; tudo indica que não foi nada bom.”
        “Você chegou a saber o nome desse homem?”
        “Não.”
        “Por que você me ajudou?”
       “Bom, acredito que todos devem ser tratados de maneira igual independente da cor, gênero ou qualquer outra característica.”
       “Fico feliz que pensa assim e que este mundo ainda tenha pessoas como você. Como você escreve... Então, é um escritor?”
        “Não. É proibido ser escritor e instigar o pensamento crítico desde do século XXIII. Só escrevo textos promocionais para empresas. Bem tedioso, não é?”
         “Para falar a verdade, deve ser sim.”
        Dr. Curie já não se impressionava com nada mais do presente no qual estava submetida. Primeiro, o Primeiro Comando do Cosmos era o governo; segundo, a escravidão do povo negro; agora, a liberdade de expressão e de pensamento que se tornara proibida. Então, ela parou um pouco e só questionou:
        “E isso dá dinheiro?”
      “Às vezes, sim, mas há meses em que estou no vermelho. Nas datas comemorativas sempre acontecem mais promoções e as empresas precisam de mais pessoas trabalhando na minha área. E tem meses com poucas comemorações, o que ocasiona menor demanda.”
         A garçonete chegou com o café, ainda olhando estranho para a negra sentada junto a um homem estranho:
        “Aqui está seu café.”
        “Obrigada. Você gostaria de alguma coisa, Cooper?”
        “Hm, gostaria sim. Você poderia me servir um café sem açúcar e uns pãezinhos de queijo?”
        “Posso sim.”
        Enquanto ele comentava algo com a moça que servia os dois, Curie estava pensando como sairia de toda aquela situação. Ela não podia voltar a um momento um pouco anterior ao que Antônio e Julio morrem para impedir esse acontecimento porque isso poderia desestabilizar todo o espaço-tempo, criando um loop infinito e sem sentido no qual existiriam várias versões de Julios e Antônios. Ela estava ciente disso. E, além do mais, o Primeiro Comando do Cosmos já devia ter domínio de todo o tempo. Por enquanto, o melhor que ela faz é procurar informações e pensar meticulosamente como poderia resolver tudo aquilo.
         “Curie, você concorda?”
        “Concordo com o que?”, ela tinha deixado de prestar atenção na conversa supérflua deles em um momento.
        “Os pãezinhos de queijo estão muito caros aqui.”
        “E quanto custam?”
        “50 annes.”
        “De fato, muito caro.”, ela falou, disfarçando que, na verdade, pensava: “O que é annes?”
        Ela acabara de perceber que não tinha como pagar por nada daquilo. No mundo em que ela estava acostumada, a moeda era o euro e ninguém andava com dinheiro em espécie, pois todos os pagamentos eram feitos via aplicações ou contactless. Então, ela logo pensou em sair daquela situação desagradável:
        “Infelizmente vou ter que ir embora agora, Cooper.”
        “Mas já? Por quê?”
        “Eu tenho que fazer umas pesquisas.”, no momento em que ela falou isso, a garçonete olhou mais estranho ainda para ela.
        “Ela quis dizer lavar louça.”, ele corrigiu temendo problemas ali.
        “É… Onde estou com a cabeça hoje?”, ela concordou sabiamente, pois já entendera que aquela realidade é bem diferente da que ela estava acostumada.
        “Posso te acompanhar?”
        “Pode sim…”
        “Ah, e pode deixar que eu pago!”
        Não demorou muito para eles saírem daquele restaurante. Eles logo estavam caminhando pelas ruas onde a taciturnidade pairava. Todo aquele lugar era infeliz: as pessoas demonstravam cansaço; os prédios eram velhos e pareciam estar prestes a desmoronar; as lojas e o comércio vendiam produtos extremamente sem sentido. Alguns pensamentos não saiam da cabeça de Curie como “Por que fazer tevês redondas?” e “Como tinha mudado tão rápido?”. Certamente eram perguntas difíceis de serem respondidas em um universo em que a liberdade de expressão e pensamento nem existiam. O silêncio demorou pouco entre os dois, pois Cooper estava curiosíssimo sobre ela:
        “Você vai dormir aonde?”
        “Eu cheguei hoje aqui e ainda não sei onde vou ficar.”
        “Você gostaria de ficar no meu apartamento?”
      Ela, sabendo que não tinha como pagar por nenhuma hospedagem e iria ficar pelo menos algumas semanas pensando em como resolveria aquilo tudo, aceitou o convite. Ela acabara de conhecer Joseph e já o achava um cara muito legal mesmo. Ele era solidário e respeitava o seu próximo. Eles não demoraram muito para caminhar até o lugar onde ele passava a maior parte do tempo. Chegando lá, viram alguns homens e mulheres saindo algemados. A doutora tinha ficado curiosa, no entanto conteve questionamentos entendendo que, naquela situação, até ela podia ser presa, já que não existia liberdade alguma. Esperou entrar no apartamento dele para questioná-lo:
       “Por que aquelas pessoas estavam saindo algemadas?”
      “Bom, aqui moram muitas pessoas e, inclusive, há algumas que eu nem conheço. Vez ou outra o governo prende criminosos que estão incitando o pensamento crítico e a liberdade de expressão. Deve ter sido isso.”
        “Você é a favor disso?”
        “Eu acho que quem desrespeita as leis deve ser preso.”
       “E se as leis desrespeitam as indivíduos?”, ela perguntou, mas logo recordou que a incitação de pensamentos críticos eram um crime. Corrigiu-se rapidamente:
        “Quer dizer… É... Você está certo.”, como quem não quer causar uma discussão.
        “Ah, ia esquecendo. Não fale muito com o nosso vizinho. Ele parece estar ligado a uma dessas organizações criminosas que são contrárias ao governo.”
         Isso deixou-a curiosa. Mas, por enquanto, o ideal era manter a discrição:
        “E os cômodos? Você pode me apresentar?”
       ‘É claro. Temos um banheiro naquela porta laranja e você pode dormir no quarto de hóspedes que fica logo ao lado da porta do banheiro. Costumamos comer fora, mas, caso queira cozinhar, é só seguir até o fogão por ali. E aqui, onde estamos, é a sala de estar. Espero que ache confortável.”
       “Ah, está ótimo! Mais uma vez, posso dizer que fico feliz que no mundo existam pessoas tão solidárias como você!”
       As horas passaram e logo amanheceu outro dia. Joseph tinha que ir atrás de empresas que procurassem alguém para escrever suas propagandas. Já Curie podia ficar em casa e pensar. No entanto, ela estava decidida a não fazer isso. Ela queria saber o porquê de daquelas prisões e ir além: conseguir sua realidade de volta. Após ele sair do apartamento, ela foi até o vizinho que provavelmente estaria ligado a uma organização criminosa do pensamento. Para ela, aquilo tudo era um absurdo; todos deveriam ser livres para desenvolver pensamentos críticos.
        “Toc, toc, toc”, ela bateu na porta dele. A apreensão dominava-a.
        “Olá. Você pode me emprestar açúcar? O que eu tinha acabou e não queria descer todas essas escadas para comprar mais.”
        “Quem é você?”, ele pergunta sem saber muito bem de onde ela é.
        “Pode me chamar de Curie. Desculpa não ter me apresentado antes. Eu estou com o Joseph, seu vizinho. Você o conhece?”
        “Apenas de vista. Neste prédio não temos o costume de desenvolver relações muito próximas. Só um minuto.”, então ele foi pegar o açúcar e, enquanto isso, ela analisava, do corredor, tudo o que podia dentro do apartamento dele. Ela percebera um quadro bem chamativo e expressivo. Assim que ele voltou, ela perguntou:
        “Aquele quadro representa o que?”
       “Aquele quadro? Nada demais.”, ele falou, com um pote de açúcar na mão, tentando disfarçar o real significado daquela arte.
       “Pensava que tinha algo a ver com liberdade. Você não acha que todos deveríamos ser livres?”
        Ele, após escutar aquela pergunta, puxou-a para dentro e disse:
      “Não sabe que falar sobre essas coisas no corredor pode levar à prisão!? É claro que penso que todos deveríamos ser livres, inclusive em relação ao pensamento crítico. No entanto, não podemos andar nos expondo assim!”
        “É claro que eu entendo isso. Você quer um café?”
        “Eu tenho café aqui. Por que você não fica um pouco mais e conversamos?”, ele falou e puxou uma poltrona para ela sentar-se.
        “É claro.”
        “Eu me chamo Luís Doppler. Tive sorte na vida porque minha família sempre teve boas condições financeiras e eu nunca precisei trabalhar. Fui um dos poucos que teve condições de estudar em uma sociedade que desvaloriza cada vez mais a ciência, a pesquisa e ensino. Não produzimos mais vacinas, porque não há cientistas. As tecnologias que temos vão se tornando obsoletas e governo vai nos empurrando aparelhos sem sentido apenas para vendê-los…”, ela não se conteve e interrompeu a fala dele:
        “Isso é um desastre! Eu sou física. Sou uma cientista! Aconteceu algo nada esperado para eu estar aqui e tenho que mudar isso. Não é todo mundo que me entenderia, mas você aparenta entender pelo menos um pouco da minha situação. Percebi isso logo pelo quadro.”
        “Ah, o quadro. Devo tirá-lo logo daí antes que algum fiscal do governo perceba. É uma pintura do pintor romântico Eugène Delacroix. Ela é conhecida por La Liberté guindant le peuple ou, se preferir no nosso português, ‘A Liberdade guiando o povo’.”
        “Fascinante. Como não percebi?! É uma comemoração à revolução Três Gloriosas, não é?”
       “Exatamente. Só um momento. Vou pegar o café para nós.”, ele foi até a cozinha e não demorou muito para voltar. Entregando uma xícara a ela, foi perguntado:
        “Como você conseguiu se tornar tão diferente dos outros deste lugar?”
        “Bom, aqui é um lugar difícil de se viver para quem gosta de pensar criticamente. Não se encontram livros porque a maior parte deles são proibidos. No entanto, o que poucos sabem é que existe a Resistência, um grupo de pessoas que acredita na liberdade e luta por ela. Infelizmente, uns colaboradores nossos foram presos ontem. Você viu?”, ele falou enquanto colocava café para eles.
         “Vi sim. Então, você é da Resistência?”
        “Sou sim. Este grupo tem muitos estudiosos. Eu, apesar de ler muito, não consegui me formar em nada. Quando estava prestes a entrar em uma universidade, o governo fechou todas. Você deveria entrar para a Resistência, já que é uma cientista.”
        “Vou pensar na sua proposta.”
        Luís e Curie deram-se realmente bem. Eles passaram a manhã e a tarde daquele dia conversando sobre Revolução Francesa, sistemas econômicos, sustentabilidade e até mesmo física. A ideia de fazer parte da Resistência fazia cada vez mais sentido para ela. Ali não era o tempo em que ela vivia, teria que haver alguma maneira de mudar aquela triste realidade. Ela tinha a esperança de encontrar mais informações no grupo defensor da liberdade do que com os outros. A maioria das pessoas que pertenciam àquela sociedade não informavam muito sobre nada e podiam até causar problemas para ela ao perceber muitos questionamentos. Quando o fim da tarde estava chegando, eles escutaram batidas na porta.
        “Toc, toc, toc.”
        “Faz silêncio.”, ele disse baixinho para a doutora e logo foi ver quem era.

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