Entrevista a um trabalhador

"Olá, o senhor se incomoda de dar uma entrevista?"

"Não."

"Conte o seu dia."

"Acordo 5 da manhã. Levanto. Escovo meus dentes. Tomo banho. Visto alguma roupa. Tomo café. Pego o ônibus, enquanto escuto algumas músicas pelo fone. Sentado, observo a cidade. Em pé, fico pedindo a Deus para que alguém se levante e eu possa sentar. Às vezes, a viagem é curta mesmo e sento por menos de dez minutos, mas ainda faço questão de sentar. Vejo uma velhinha e logo finjo que estou dormindo."

"E quando está em pé?" 

"Já é tão habitual fingir dormir e acabo fingindo sem querer. Também é muito comum eu estar no ônibus e olhar pros decotes das mulheres."

"Já assediou alguma?"

"Assediar? Eu? Nunca, minha senhora! No máximo, às vezes, encosto 'sem querer' na bunda de uma ou bato uma, enquanto vejo aquela #censurado#"

"O senhor é racista?"

"Não, magina! Eu? Mas é normal, né? Às vezes passa um 'pirangueiro', você já passa a ter medo de ser assaltado."

"O que seria um pirangueiro?"

"Um moço de olhos claros, branco, alto e loiro. Dizem que esses são os piores. Só andam com coisas de marca, que 'tá' na moda e tudo mais."

"Continue o seu dia."

"Então chego no trabalho e elogio aquela mulher com a qual eu quero trair minha esposa. Mas eu acho que o chefe tem mais chances do que eu."

"Um minuto... Mulher com a qual... Ela tem nome?"

"Nunca soube."

"Pode continuar."

"Passo horas naquela chatice de escrever relatórios. Às 12, vou almoçar com os meus amigos. Aí, é aquele negócio, né? Piada racista aqui e acolá..."

"E piada homofóbica?"

"Ora! É só o que rola... Entendeu? 'Rola'?"

"Vocês conversam sobre algo mais?"

"Não. Às vezes, o Luiz puxa uns assuntos sobre projetos de lei contra canudos plásticos, projeto de lei contra isso, contra aquilo... É um saco ir almoçar com ele, mas toda roda de amigos tem um chato, né? Fazer o que?"

"E o seu filho? Como o senhor conversa com ele sobre casais gays, por exemplo?"

"Ora... Eu, sentado à mesa de jantar, jogo uma piada contra gays aqui e acolá, só pra ter certeza que ele não vai se tornar, sabe?"

"Sei... E sua mulher?"

"Não. Aí é uma relação bem estreita. Chego em casa, ela também chega do trabalho depois de mim e o Juninho chega do racha, aí todos sentamos no sofá e fingimos que vivemos uma vida feliz. Até porque um casal de 30 anos não aguenta nem olhar mais pra cara um do outro, mas a gente vai levando, né? Só pra dizer que somos feliz e temos 30 anos de casados. É tipo vegano, sabe? Não consegue passar mais de 30 minutos sem falar que é."

"Agradecemos seu tempo e tenha um dia mais ou menos, porque bom deve ser difícil, não é?"

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