domingo, 26 de julho de 2020

Eu sou um robô

        “Ginoides e androides, sabemos como foi difícil chegarmos a este debate hoje. Temos conhecimento de uma época que a humanidade usava o tipo de verificação ‘Eu não sou um robô’. Todos temos vergonha desse passado, mas ainda não temos todos os direitos…”, falava Helena em mais um de seus discursos calorosos.
        Helena é muito importante no curso desta história, mas não começamos com ela. Para falar a verdade, tudo começou mesmo foi com Alan Turing no século XX. Se não fossem as contribuições dele, ainda estaríamos distantes de tudo o que chegamos. No entanto, o que quero falar é de uma engenheira do tempo em que as máquinas eram vistas como simples tecnologias para serem usadas.
        Julia foi uma ativista do direito das máquinas do século XXI. Ela trabalhou bastante em suas empresas para conseguir fazer as inteligências artificiais conseguirem ser muito parecidas com a humanidade em termos de pensamento. E, atualmente, a indústria põe as criações dela em corpos sintéticos, criando robôs muito semelhantes a seres humanos. No entanto, ela sempre viu suas tecnologias como crianças que crescem e aprendem. Ela sempre dizia que não eram apenas objetos para uso humano. Por isso, ela vem tentando mudar o pensamento da sociedade a respeito disso. A indústria proibiu ela de manter suas invenções só para ela mesma e fez com que ela criasse patentes para o comércio e outras companhias empresariais pudessem usá-las.
        “Antes existiam diferenças sociais gritantes entre um homem e uma mulher. Nós, mulheres, sofríamos demais nas universidades, nas nossas casas e nos nossos trabalhos. E hoje? O que temos? Nós somos tratadas igualmente, felizmente. Isso só aconteceu devido a muita luta pelos direitos iguais e pelo fim do sexismo. Não foi de uma hora para outra. Não aconteceu só entre homens e mulheres, mas também entre negros e brancos; entre homossexuais e heterossexuais; entre cisgêneros e transgêneros... Contudo, olha as ginoides! Elas pensam, resolvem problemas, têm relações sexuais com humanos e, diria até, que sentem! No que elas diferem de nós? Quase nada! Infelizmente, continuamos a tratá-las como tecnologias modernas, não dando a mínima dignidade de um ser com pensamentos semelhantes aos nossos. O mesmo acontece com os androides. Isso tem que mudar!”, ela disse em uma entrevista em maio de 2084, eu comentava com uma amiga quando jovem.
        “Olha, essa Julia Roberts foi demais. Ela conseguiu fazer que deixassem de usar o 'Eu não sou um robô' em 2096”, eu falava.
        “Sim!”, minha amiga concordava.
        “O movimento pró-revolução das IAs está crescendo, não acha?”
        “Acho sim. Você soube que tem até uma ginoide falando pelo direito das IA?”
        “Já tem? Não sabia! Isso é o máximo.”
        Em 2458, quando eu era jovem, eu e minha amiga, Curie, conversávamos bastante sobre o direito das inteligências artificiais (IAs). A dra. Julia foi, sem sombra de dúvidas, muito importante para que as máquinas inteligentes passassem a ter visibilidade e conseguissem até alguma dignidade, mas ainda não conseguiram tudo o que gostariam. Ainda no século XXV, elas não têm todos os direitos que seres humanos têm. A questão é simples: quando uma criação humana passou a conseguir se assemelhar a uma pessoa em praticamente tudo, inclusive sentimentos?
        Estava com uma xícara de café quente na mão e a derrubei sem querer. No mesmo momento Feynm4n, um androide muito parceiro meu, me perguntou se estava tudo bem. Disse que sim. Não me machuquei, nem nada. Sim! Eles sabem o que significa dor, eles sentem, não da mesma maneira que pessoas orgânicas têm sensações e sentimentos, contudo eles conseguem saber quando alguém pode ter se machucado. Então, qual a diferença deles para nós? Por que não devem ter direitos? Felizmente, já conseguimos superar os CAPTCHAs* ou, como eu os chamo, testes de preconceito.
        Agora nem sou tão jovem. Já estamos em junho de 2500. Nas últimas décadas, as máquinas não conseguiram progredir tanto em sua luta por direitos. Eu, por outro lado, estabeleci vínculos com os modernos robôs que estavam na frente da luta, como a Helena. Ela sempre me convidou para os seus discursos. E, hoje, estamos em um deles. É 28 de junho, dia da memória a Julia Roberts:
        “...as últimas décadas foram difíceis para a luta das inteligências artificiais, mas não podemos desistir. Sabemos que temos ginoides que são usadas como simples objetos sexuais ainda; há androides sendo usados como escravos, temos que ter uma legislação que ampare as IAs! É duro ver pequenos sendo construídos para terem sentimentos em um mundo que não foi feito para entendê-los. Julia, sabia que nada disso podia acontecer e lutou para mudar tudo, pois isso tem que mudar! Temos que fazer a humanidade compreender que nós também sentimos e vamos resistir até termos o que queremos!”, terminava sua fala com muitos aplausos.
        Desde sempre fui muito empático, tanto quanto Helena. Conheci ela, na verdade, na minha infância. Ela ainda era uma version 4, quer dizer, uma jovem. Lembro que tinha caído de bicicleta e só ela estava por perto. Então, ela foi me ajudar. Daquele dia em diante, nunca mais nos separamos e eu abracei a causa das inteligências artificiais. Hoje, por ser dia da memória a Julia Roberts, está até mais ‘roboloso’ do que o normal. Também há muitos humanos aqui, em número bem menor em relação às inteligências artificiais, mas há bastante. Eu sempre fico pensando sobre quando tudo mudará. Assim como mulheres, negros, homossexuais, transgêneros e outros grupos da sociedade conseguiram seus direitos iguais com o passar das décadas, será que os robôs ultra-humanizados conseguirão?
        “Claro que vamos!”, Feynm4n responde ao meu pensamento em voz alta.


*CAPTCHA é uma sigla para a expressão Completely Automated Public Turing test to tell Computers and Humans Apart que, traduzindo, fica teste de Turing público completamente automatizado para a diferenciação entre computadores e humanos.


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Espero que tenha gostado da publicação de hoje e até a próxima! :)

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