Eram quase cinco da tarde, quando um moço, jovem e negro, caminhava pelas ruas da grande Fortaleza. Ele gostava de se expressar, de amar, de sentir, de viver, de ser e de estar. Porém, meio ao caos que é aquela cidade no horário de pico, horário em que o trabalhador fica como uma sardinha em ônibus superlotados, horário em que as pessoas caminham apressadas para chegar nos seus cativeiros, ele caminhava naquelas ruas sem pressa, mas com uma tristeza que rondava seu coração, levando sua alma às mais profundas ruínas sentimentais.
Às vezes, a vida é difícil. Com exceção para os artistas, pois, para eles, sempre, a vida é difícil. Felizmente ou infelizmente, aquele jovem rapaz é um artista que chamam de pintor, é um poeta que chamam de vagabundo, é um compositor favelado do Bom Jardim que, agora... Agora, era só um moço que caminha nas ruas da grande Fortaleza, deprimido como um pássaro engaiolado, com a alma e o coração feridos. Tudo começou há algumas horas, quando ele acordou para ir trabalhar. Era o primeiro dia dele e ele estava muito feliz e animado para mostrar tudo o que ele sabia e podia fazer, tudo o que tinha dentro de si que foi guardado por tanto tempo, reprimido por tantos séculos e eras.
Eram 4 da manhã, ele acorda meio indisposto, mas com muita animação para começar a trabalhar como pintor em uma empresa de serviços gerais. Ele vai para a parada, espera alguns minutos e pega um ônibus superlotado, lembrando do orgulho do pai, um pobre agricultor, ao vê-lo indo trabalhar e pensa como tudo aquilo valia a pena. Ele vai não pensando em ser só mais um, ele vai querendo ser o melhor e mais habilidoso dos pintores. Então, ele chega no local o qual indicaram que ele devia pintar e um homem branco de terno o instrui sobre a pintura, dizendo que o muro deve ser pintado todo de branco e exatamente na metade do mesmo deve ter um quadrado preto de lado de 1 metro. O rapaz, jovem e sem poder na situação, consente com a cabeça e diz que às cinco da tarde tudo estará pronto.
Já eram 8 da manhã quando o moço começou a pintar. Ele pintava com aquela cor que não dizia muita coisa sobre ele, com uma única cor que não expressava nada a ninguém, com uma cor que não correspondia a sua arte muito hábil e expressiva. Às 12, ele já tinha pintado todo o extenso muro de branco e, agora, devia pintar o quadrado. E lá estava ele, suado e um pouco cansado, meio aos raios solares, pintando aquela figura geométrica empobrecida e sem expressões, apenas com um formato definido: com quatro lados iguais e quatro ângulos de noventa graus; era simplesmente um quadrado, sem muitos sentimentos e com um formato nada mais do que pobre que também não correspondia à riqueza da alma de um jovem ansioso por expressão, pelos sentimentalismos, pelas paixões e, sobretudo, pela vida que, felizmente, não tem formato definido, mas é doce e, às vezes, amarga.
"Era isso!" - ele pensa assim que termina de pintar o quadrado - "É isso mesmo! Sempre tentam dar um formato às pessoas, sempre tentam encaixá-las em uma simples forma geométrica que nunca diz muito sobre elas. Nunca temos um formato definido, tal como um quadrado tem..." - e conclui - "...sempre estamos, nunca somos!" Jovem, negro e pobre da periferia, o moço, agora, tinha entendido, olhando o muro pintado, como funcionava tudo isso, todo o sistema baseado em capitais que nunca refletem o momento em que estamos. E decidiu-se não fazer parte disso, decidiu pintar o que ele sentia, fazer o melhor que sabia. No instante da decisão, ele pegou uma lata de tinta vermelha e jogou com todas as suas forças no quadrado todo perfeitinho que, agora, se tornava uma figura sem um formato bem definido, sem lados, sem os quatro ângulos de noventa graus; porém, uma figura rica nas expressões mais belas que a humanidade já viu.
Assumindo todos os riscos, o jovem artista pintava o muro, habilidosamente, com cores e formatos tal como ele sentia, de tal modo que mostrasse todas as habilidades dele. Neste momento, ele não pintava mais por cédulas pobres, mas por amor. Simplesmente, amor. Agora, não era mais um homem branco de terno que dizia o que ele devia fazer, mas sim todos os sentimentalismos internos que ele tinha; que, naquela pintura, se externalizavam. O muro deixava de ser um simples muro, passou a ser símbolo de expressão e revoluções, de momentos e movimentos, de amores e desamores, de sentimentos que não eram capitalizados, e só podiam ser expressados.
Por volta das 16 horas da tarde, o muro tinha expressão, tinha história, tinha emoção, tinha sentimentos; estava, enfim, pronto, com todas as expressões que aquele artista juvenil queria expressar há tanto tempo, há tantos séculos, há tantas eras. Porém, infelizmente, não era o que o homem branco de terno via naquela arte; ele nem sequer via a arte; ele vivia em um mundo de sentimentos superficialmente quadrados e capitalizados, que deviam ter formas bem definidas. Aquela obra com formatos indefinidos, para a vida quadrada que aquele homem levava, era um símbolo vagabundo, perigoso e sem sentido, já que ele nem sentia mais.
Eram 16:30 quando o homem branco de terno chegou ao local para pagar o moço. Olhando o muro, o homem, abismado e furioso com toda a expressividade daquela arte, ligou para a empresa do rapaz e fez com que ela demitisse o jovem artista que, agora, se sentia sem chão. Como ele ia dizer pro pai, que estava tão orgulhoso vendo-o ir trabalhar, que tinha sido demitido no primeiro dia de trabalho? Ele estava tão feliz e pleno pela manhã e, agora, arrasado. Infelizmente, a vida é assim: sem formatos bem definidos, sem previsões, contendo apenas imprevisões e imperfeições.
Já passavam das 5 da tarde, quando ele ainda caminhava totalmente deprimido pelas ruas da grande Fortaleza. Caminhava sem rumos, nem direções. Estava sentindo o sabor amargo das ruínas do capital. Neste momento, ele recebe uma ligação. Era um número desconhecido e ele passava por um momento muito triste para falar com alguém, então ignora a chamada. Porém, voltam a ligar para ele. Ele desliga novamente. E ligam de novo. Ele, pensando que pode ser algo importante, atende. No telefone, uma voz doce: "Alô. Falo com artista que fez essa arte no muro do Benfica?" Naquele instante, inseguro, responde: "É ele sim. Mas vão tirar isso aí logo logo, não se preocupe." Era uma jornalista que falava com ele. Inconformada com a resposta, ela diz que nunca vão tirar aquela pintura dali, é uma obra de arte; jamais, podem fazer isso. Ela explica para ele que gostaria de marcar uma entrevista o mais breve possível. Ele, com o coração pulando de alegria, diz que é só ela marcar. Ainda bem que nem todas as pessoas vivem em mundos quadrados como aquele homem branco. Ainda bem que, felizmente, a vida é assim: sem formatos bem definidos, sem previsões, contendo apenas imprevisões e perfeições.
Os anos passaram, mais artes sem formatos definidos aquele moço criou nos muros de cidades do Brasil e do mundo. Hoje, reconhecido internacionalmente pelas suas inovações artísticas, ele vive sua vida sem formas, tal como qualquer um deve viver para alcançar a plenitude da alma. Seu pai tem um orgulho imensurável pelo filho. Às vezes, o jovem, agora, nem tão jovem artista passa horas admirando sua primeira obra de arte no Benfica, fazendo reflexões e pensando sobre as perplexidades vividas por ele e por tantos outros pintores, poetas, compositores, escritores que são, no fim, artistas.
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Agradecimentos:
ao Pedro Lucas (@mrzpedro no Instagram) pelas discussões e conversas sobre mundos e sentimentos quadrados e a todos que compartilham tudo o que é arte nos meios de divulgação.
Comentários:
Não viva em um mundo quadrado :p
Vê aí mais um texto cheio de sentimentalismos: As ruínas do capitalismo
Abração e até o próximo texto ;)
Já eram 8 da manhã quando o moço começou a pintar. Ele pintava com aquela cor que não dizia muita coisa sobre ele, com uma única cor que não expressava nada a ninguém, com uma cor que não correspondia a sua arte muito hábil e expressiva. Às 12, ele já tinha pintado todo o extenso muro de branco e, agora, devia pintar o quadrado. E lá estava ele, suado e um pouco cansado, meio aos raios solares, pintando aquela figura geométrica empobrecida e sem expressões, apenas com um formato definido: com quatro lados iguais e quatro ângulos de noventa graus; era simplesmente um quadrado, sem muitos sentimentos e com um formato nada mais do que pobre que também não correspondia à riqueza da alma de um jovem ansioso por expressão, pelos sentimentalismos, pelas paixões e, sobretudo, pela vida que, felizmente, não tem formato definido, mas é doce e, às vezes, amarga.
"Era isso!" - ele pensa assim que termina de pintar o quadrado - "É isso mesmo! Sempre tentam dar um formato às pessoas, sempre tentam encaixá-las em uma simples forma geométrica que nunca diz muito sobre elas. Nunca temos um formato definido, tal como um quadrado tem..." - e conclui - "...sempre estamos, nunca somos!" Jovem, negro e pobre da periferia, o moço, agora, tinha entendido, olhando o muro pintado, como funcionava tudo isso, todo o sistema baseado em capitais que nunca refletem o momento em que estamos. E decidiu-se não fazer parte disso, decidiu pintar o que ele sentia, fazer o melhor que sabia. No instante da decisão, ele pegou uma lata de tinta vermelha e jogou com todas as suas forças no quadrado todo perfeitinho que, agora, se tornava uma figura sem um formato bem definido, sem lados, sem os quatro ângulos de noventa graus; porém, uma figura rica nas expressões mais belas que a humanidade já viu.
Assumindo todos os riscos, o jovem artista pintava o muro, habilidosamente, com cores e formatos tal como ele sentia, de tal modo que mostrasse todas as habilidades dele. Neste momento, ele não pintava mais por cédulas pobres, mas por amor. Simplesmente, amor. Agora, não era mais um homem branco de terno que dizia o que ele devia fazer, mas sim todos os sentimentalismos internos que ele tinha; que, naquela pintura, se externalizavam. O muro deixava de ser um simples muro, passou a ser símbolo de expressão e revoluções, de momentos e movimentos, de amores e desamores, de sentimentos que não eram capitalizados, e só podiam ser expressados.
Por volta das 16 horas da tarde, o muro tinha expressão, tinha história, tinha emoção, tinha sentimentos; estava, enfim, pronto, com todas as expressões que aquele artista juvenil queria expressar há tanto tempo, há tantos séculos, há tantas eras. Porém, infelizmente, não era o que o homem branco de terno via naquela arte; ele nem sequer via a arte; ele vivia em um mundo de sentimentos superficialmente quadrados e capitalizados, que deviam ter formas bem definidas. Aquela obra com formatos indefinidos, para a vida quadrada que aquele homem levava, era um símbolo vagabundo, perigoso e sem sentido, já que ele nem sentia mais.
Eram 16:30 quando o homem branco de terno chegou ao local para pagar o moço. Olhando o muro, o homem, abismado e furioso com toda a expressividade daquela arte, ligou para a empresa do rapaz e fez com que ela demitisse o jovem artista que, agora, se sentia sem chão. Como ele ia dizer pro pai, que estava tão orgulhoso vendo-o ir trabalhar, que tinha sido demitido no primeiro dia de trabalho? Ele estava tão feliz e pleno pela manhã e, agora, arrasado. Infelizmente, a vida é assim: sem formatos bem definidos, sem previsões, contendo apenas imprevisões e imperfeições.
Já passavam das 5 da tarde, quando ele ainda caminhava totalmente deprimido pelas ruas da grande Fortaleza. Caminhava sem rumos, nem direções. Estava sentindo o sabor amargo das ruínas do capital. Neste momento, ele recebe uma ligação. Era um número desconhecido e ele passava por um momento muito triste para falar com alguém, então ignora a chamada. Porém, voltam a ligar para ele. Ele desliga novamente. E ligam de novo. Ele, pensando que pode ser algo importante, atende. No telefone, uma voz doce: "Alô. Falo com artista que fez essa arte no muro do Benfica?" Naquele instante, inseguro, responde: "É ele sim. Mas vão tirar isso aí logo logo, não se preocupe." Era uma jornalista que falava com ele. Inconformada com a resposta, ela diz que nunca vão tirar aquela pintura dali, é uma obra de arte; jamais, podem fazer isso. Ela explica para ele que gostaria de marcar uma entrevista o mais breve possível. Ele, com o coração pulando de alegria, diz que é só ela marcar. Ainda bem que nem todas as pessoas vivem em mundos quadrados como aquele homem branco. Ainda bem que, felizmente, a vida é assim: sem formatos bem definidos, sem previsões, contendo apenas imprevisões e perfeições.
Quadrado negro sobre fundo branco, de Kazimir Malevich |
Os anos passaram, mais artes sem formatos definidos aquele moço criou nos muros de cidades do Brasil e do mundo. Hoje, reconhecido internacionalmente pelas suas inovações artísticas, ele vive sua vida sem formas, tal como qualquer um deve viver para alcançar a plenitude da alma. Seu pai tem um orgulho imensurável pelo filho. Às vezes, o jovem, agora, nem tão jovem artista passa horas admirando sua primeira obra de arte no Benfica, fazendo reflexões e pensando sobre as perplexidades vividas por ele e por tantos outros pintores, poetas, compositores, escritores que são, no fim, artistas.
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Agradecimentos:
ao Pedro Lucas (@mrzpedro no Instagram) pelas discussões e conversas sobre mundos e sentimentos quadrados e a todos que compartilham tudo o que é arte nos meios de divulgação.
Comentários:
Não viva em um mundo quadrado :p
Vê aí mais um texto cheio de sentimentalismos: As ruínas do capitalismo
Abração e até o próximo texto ;)
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